Na exposição aos credores, Irineu Evangelista de Sousa, Barão e, depois, Visconde de Mauá, advertiu no século XIV que “desgraçadamente entre nós entende-se que os empresários devem perder para que o negócio seja bom para o Estado, quando é justamente o contrário que melhor consulta os interesses do país”.
Lei 11.101/2005 representou substancial mudança de paradigma no Direito Empresarial, na medida em que passou a privilegiar, em caso de crise momentânea da empresa, a recuperação das atividades econômicas viáveis diante dos objetivos coletivos econômico-sociais da livre iniciativa. Com a sua aplicação no tempo, os agentes econômicos passaram a identificar a existência de óbices à eficiência da recuperação judicial, a saber: I) dificuldade de a empresa obter empréstimos para dar continuidade às suas atividades; II) os créditos tributários não se sujeitam à recuperação; III) proteção desequilibrada às instituições financeiras, diante da exclusão da alienação fiduciária e adiantamento de contrato de câmbio da recuperação; IV) os credores conservam os direitos e os privilégios contra coobrigados; e V) inexistência de diagnóstico prévio para apurar a viabilidade da atividade econômica.
O Observatório de Insolvência da PUC-SP, já antes de 2020, apontava dados alarmantes, a saber: apenas 18,2{a50adec798dbc0f88b3eabe56cf473735b25450c039c40948cf77e66b9d395ab} das empresas encerram o processo de recuperação sem decretar falência; 57,1{a50adec798dbc0f88b3eabe56cf473735b25450c039c40948cf77e66b9d395ab} das empresas não cumprem o plano de recuperação, mas continuam como “empresas zumbis” (sem capacidade de investimento e geração de caixa); e 24,7{a50adec798dbc0f88b3eabe56cf473735b25450c039c40948cf77e66b9d395ab} das empresas têm falência decretada.
Nesse contexto, após amplo debate, a Câmara dos Deputados, no último dia 25, aprovou o Projeto de Lei 6229/05, de autoria do deputado Hugo Leal (PSD-RJ), atualizando a Lei de Recuperação com o propósito de emprestar eficiência ao postulado de recuperação da empresa. Entre várias, destacam-se as seguintes inovações: I) incentivo à concessão de crédito para a empresa em recuperação; II) descontos e prazos maiores para parcelamento de débitos tributários com a União; III) incentivo à negociação extrajudicial; IV) a proteção dos bens essenciais à manutenção da atividade econômica; V) inexistência de sucessão ou responsabilidade por dívidas a credor e/ou a investidor ou em caso de alienação de ativos a terceiros; VI) possibilidade de ser apresentado plano de recuperação pelos credores, em caso de rejeição do plano indicado pelo devedor; VII) os créditos trabalhistas, se aprovados pelo sindicato, passam se sujeitar à recuperação; VII) previsão de nomeação de um profissional para constatar as reais condições de funcionamento da devedora; IX) suspensão das execuções movidas contra coobrigados; X) a pessoa física que exerça a atividade rural poderá se valer do pedido de recuperação.
Por oportuno, há a previsão de regra que incentiva a concessão do crédito à empresa em recuperação, ao estabelecer que o empréstimo tem preferência de pagamento sobre os créditos extraconcursais, contraídos durante o processo de recuperação, mediante a constituição de garantia de bens pertencentes ao ativo não circulante do próprio devedor (destinados à atividade duradoura) ou de terceiros (sócio, credores, familiares, empresa do mesmo grupo econômico), para financiar as suas atividades e as despesas de reestruturação, subordinados à autorização judicial. Poderá agir como credora qualquer pessoa, inclusive os credores sujeitos ou não aos efeitos da recuperação, familiares, sócio e outra sociedade integrante do grupo econômico do devedor. A garantia a ser constituída no empréstimo pode recair sobre um ou mais ativos do devedor em favor do credor, dispensando a anuência do detentor da garantia original. Como se trata de crédito extraconcursal, que detém privilégio, pode-se discutir a prevalência ou não da nova garantia em relação à original. Em razão do princípio da preferência do direito real de garantia, a nova garantia ficará limitada ao eventual excesso da alienação do ativo objeto da garantia original. Mesmo que a autorização judicial venha a ser modificada em grau de recurso, o financiamento mantém as mesmas características e garantias, caso já tenha ocorrida a disponibilização do capital.
Embora tenha mantida a característica de ser extraconcursal, o crédito tributário com a União fica passível de parcelamento por até dez anos, e de transação tributária (contribuinte legal, Lei 13.988/20) com possibilidade de redução de até 70{a50adec798dbc0f88b3eabe56cf473735b25450c039c40948cf77e66b9d395ab} da dívida. Com vistas à aplicação do princípio da preservação da empresa e à proteção da continuidade da atividade econômica, o juízo da recuperação detém competência para determinar a suspensão dos atos de constrição sobre bens essenciais ao devedor, ainda que o crédito seja extraconcursal, como são exemplos a alienação fiduciária e o crédito tributário. A rigor, tais inovações apenas retratam a construção jurisprudencial já adotada pelos tribunais.
Mesmo diante do entendimento de que as disposições constantes do CPC/2015 são aplicáveis subsidiariamente, o projeto de lei consagra regras expressas segundo as quais é lícito ao juiz deferir providência jurisdicional provisória, incluindo as tutelas de urgência e de evidência, os prazos serão contados em dias corridos e das decisões proferidas caberá o recurso de agravo de instrumento.
O crédito trabalhista poderá ser incluído na recuperação judicial se houver negociação coletiva com o sindicato da categoria profissional. Adotando uma orientação jurisprudencial, há a previsão de que a pessoa física que exerça atividade rural, mediante comprovação da escrituração contábil fiscal ou registros contábeis semelhantes, detém legitimidade para requerer a recuperação judicial. Os créditos concedidos por instituições financeiras, de que tratam os artigos 14 e 21 da Lei 4.829/65 e tenham sido objeto de renegociação com a instituição financeira antes do pedido de recuperação, os relativos à dívida constituída nos últimos três anos anteriores ao pedido de recuperação com finalidade de aquisição de propriedade rural, não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial. Os créditos e garantias cedulares vinculados à cédula de produto rural não se sujeitarão aos efeitos da recuperação.
Caso o plano de reestruturação apresentado pelo devedor seja rejeitado, é lícito à assembleia dos credores aprovar um plano de recuperação, mediante a manifestação de credores que representem mais de 25{a50adec798dbc0f88b3eabe56cf473735b25450c039c40948cf77e66b9d395ab} dos débitos ou que, presentes na assembleia, representem mais de 35{a50adec798dbc0f88b3eabe56cf473735b25450c039c40948cf77e66b9d395ab} dos débitos. Caso o plano de recuperação envolva a alienação de ativos do devedor, o bem estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza.
Na hipótese de conversão da dívida em capital, aporte de novos recursos ou aquisição de bens em leilão, o terceiro investidor ou adquirente não será tido como sucessor ou responsável por dívidas de qualquer natureza constituídas anteriormente pelo devedor.
Para evitar a instauração de processo de recuperação de empresas inviáveis, o juiz poderá, após a distribuição do pedido, nomear um perito para, no prazo de cinco dias, produzir laudo simplificado de constatação das reais condições de funcionamento do devedor e da regularidade e da completude da documentação apresentada, sem que as partes possam apresentar quesitos prévios. Com o laudo de constatação, poderá o juiz determinar a realização de diligência, proferir decisão admitindo ou não o processamento da recuperação judicial ou determinar a emenda da inicial. Registre-se que o laudo de constatação prévia se limitará à verificação das reais condições de funcionamento da empresa e da regularidade documental, não podendo adentrar na análise da viabilidade econômica do devedor.
O deferimento da recuperação implica a suspensão das execuções, ajuizadas em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitas à recuperação judicial, e a dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça as suas atividades econômicas, como também para celebrar contrato com o poder público ou para recebimento de benefícios ou incentivos creditícios.
Estabelecendo regra processual expressa, há a previsão de que os devedores que integram grupo sob controle societário comum poderão, em regime de litisconsórcio ativo, pleitear recuperação judicial perante o juízo do local do principal estabelecimento, devendo cada devedor apresentar individualmente a documentação exigida pela lei. Apesar da formação da consolidação em um mesmo procedimento, os devedores são independentes, inclusive dos seus ativos e passivos, dos meios de recuperação, da deliberação em assembleia, e do exame do pedido de mérito. Poderá, no entanto, o juiz determinar a reunião de um único rito (consolidação substancial de ativos e passivos dos devedores do mesmo grupo econômico), quando constatar a interconexão/confusão entre ativos/passivos dos devedores, e existência de garantias cruzadas, relação de controle, identidade total ou parcial do quadro societário ou atuação conjunta no mercado.
Há o incentivo à mediação e conciliação pré-processual entre o devedor e os credores, assim como à recuperação extrajudicial cujo quórum de aprovação do plano depende de maioria simples dos credores que representem mais da metade dos créditos de cada classe do plano. Para obter a homologação do plano de recuperação extrajudicial, o quórum exigido passa a ser de mais da metade dos créditos de cada espécie abrangidos pelo plano de recuperação extrajudicial, aplicando-se, ainda, o prazo de suspensão das ações judiciais de que trata o artigo 6º da Lei de Recuperação.
As inovações contidas no mencionado projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados são relevantes porque motivadas no propósito meritório de concretizar o princípio maior que é o da preservação das atividades econômicas viáveis.
Por Gleydson K. L. Oliveira, advogado, professor da graduação e do mestrado da UFRN, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 1 de setembro de 2020, 20h09
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