Novo CPC aumenta segurança jurídica ao mudar regras da coisa julgada formal

AdamNews – Divulgação exclusiva de notícias para clientes e parceiros!
A coisa julgada é um dos mais antigos institutos jurídicos. Sua origem vai além da Lei das XII Tábuas e inspira-se no brocardo latino bis de eadem re ne sit actio que, traduzido livremente, significa: sobre uma mesma relação jurídica não se pode exercer duas vezes a ação da lei, isto é, o processo.
A ideia de proibição na duplicidade do exercício da atividade jurisdicional constitui o núcleo de seu sentido, motivo pelo qual já tivermos oportunidade de defini-la como uma “situação jurídica que se caracteriza pela proibição de repetição do exercício da mesma atividade jurisdicional, sobre o mesmo objeto, pelas mesmas partes (e, excepcionalmente, por terceiros), em processos futuros.”[1]
Infelizmente, talvez por culpa da técnica utilizada no CPC em vigor, no artigo 467, a coisa julgada tem sido amiúde abordada apenas sob o viés da imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo da decisão judicial transitada em julgada, olvidando o intérprete que a interpretação literal e isolada não é adequada na medida em que os diplomas legais pretendem funcionar como um sistema lógico e harmônico. Por consequência, de suma importância, para a correta compreensão do instituto, o que dispõem o art. 301 e seus parágrafos 1º e 3º do CPC.
A ideia de proibição de reprodução (ou repetição) está bastante clara no parágrafo primeiro do referido dispositivo legal, assim redigido: verifica-se (…) a coisa julgada quando se reproduz ação anteriormente ajuizada. No parágrafo terceiro, de forma ainda mais evidente, está dito que há coisa julgada quando se repete ação que já foi decidida.
Daí por que é possível afirmar, com toda segurança, que a coisa julgada é, na verdade, uma concretização na proibição do bis in idem. Portanto, a proibição de repetição da ação (art. 301, §§1º e 2º do CPC) e a imutabilização da decisão judicial (art. 467 do CPC) são apenas técnicas para se proibir a duplicidade do exercício da jurisdição sobre o mesmo objeto e pelas mesmas partes.
Pois bem.
A relação que se estabelece entre coisa julgada e exercício da jurisdição não é ontológica, pois aquela não é indissociável desta. Embora raros nos dias atuais, há notícias de ordenamentos jurídicos do passado que não adotavam o instituto, como os direitos norueguês e canônico.
E não sendo a coisa julgada ontologicamente ligada ao exercício da jurisdição, faz-se necessário precisar em que patamar se firma essa relação. Segundo pensamos, essa conexão é teleológica, pois a adoção do instituto, pelos diversos ordenamentos jurídicos, visa a proteção de valores socialmente relevantes.
O professor Miguel Reale, com muita precisão, demonstra a profunda relação entre as perspectivas teológica e axiológica ao afirmar que “[u]m fim outra coisa não é senão um valor jurídico posto e reconhecido como motivo de conduta. Não existe possibilidade de qualquer fenômeno jurídico sem que se manifeste este elemento de natureza axiológica, conversível em elemento teleológico.” (Filosofia do Direito. 20ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 544).
O valor jurídico protegido pela coisa julgada é, indiscutivelmente, a segurança jurídica, um dos mais importantes imperativos do Estado de Direito – o qual, numa perspectiva constitucional, situa-se para além de contornos axiológicos, possuindo inegável conteúdo normativo (art. 5o., caput, XXXIII, CRFB). Enfim, o acolhimento desse instituto visa, acima de tudo, trazer estabilidade ao exercício da jurisdição. Aliás, a segurança que o sistema imprime ao resultado do exercício da jurisdição é tamanha que a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LVI, diz que nem mesmo a lei nova pode alterar a situação jurídica denominada de coisa julgada.
Assim, é correto dizer, com firmeza, que nenhuma lesão ou ameaça de lesão poderá ser excluída da apreciação do Poder Judiciário (art. 5º inciso XXXV da CF). Contudo, a jurisdição só será exercida uma única vez, senda vedada sua repetição. O instituto que proíbe essa repetição, como já se enfatizou, é a coisa julgada.
A finalidade da jurisdição é o julgamento da afirmação de uma lesão ou ameaça de lesão a direitos subjetivos, o que será feito em ambiente normativo-processual, até como forma de se assegurar a legitimidade dela própria e do seu resultado (tutela jurisdicional). Naquilo que interessa, o processo estabelecerá uma relação lógica com o mérito, que é de continência: o processo, como forma, é o continente; o mérito, o conteúdo.
Tendo em vista essa duplicidade lógica (entre forma e conteúdo), o exercício da jurisdição não se restringirá à análise apenas do mérito, mas também da forma. Erros formais que descaracterizem o devido processo legal (art. 5º inciso LV da CF) podem impedir o magistrado de julgar o mérito. Nada obstante deva inexoravelmente ser priorizada na aludida relação o mérito – o novo CPC evidencia essa conclusão ao instituir, como norma fundamental, a primazia do julgamento do mérito (art. 4o.) –, não se pode descartar a indispensabilidade de uma forma adequada, sob pena de prejuízos no próprio julgamento.
Exatamente por isso os doutrinadores modernos reconhecem a existência de dois tipos diversos de sentenças: a) a definitiva, que julga o mérito; e b) a terminativa, que julga a forma (pressupostos processuais e condições da ação). A consequência inevitável dessa dualidade também reflete no instituto da res iudicata, gerando duas espécies distintas: a) a coisa julgada formal e b) a coisa julgada material.
Com base no conceito acima apresentado, é possível extrair duas conclusões: a) a coisa julgada material é a situação jurídica que se caracteriza pela proibição de repetição do exercício da mesma atividade jurisdicional, sobre decisão de mérito, pelas mesmas partes (e, excepcionalmente, por terceiros), em processos futuros (art. 334, §§ 1º e 4º e art. 499 do CPC); b) a coisa julgada formal, por seu turno, representa “a situação jurídica que se caracteriza pela proibição da repetição do exercício da mesma atividade jurisdicional, sobre decisão terminativa, pelas mesmas partes (e, excepcionalmente, por terceiros), em processos futuros (art. 334, §§ 1º e 4º, art. 483, §1º e art. 499, todos do CPC).[2]
Como espécies do mesmo gênero, ambas guardam pontos de identidade e de diferenciação. A diferença reside no conteúdo da decisão judicial: a coisa julgada material incide sobre decisões de mérito, chamadas definitivas; a coisa julgada formal acoberta decisões relativas a questões formais, chamadas de terminativas. O ponto de identidade é a capacidade que têm de produzirem efeitos externos ao processo em que foi proferida a decisão judicial. Esta eficácia externa impede a repetição do exercício da mesma atividade jurisdicional, em processos futuros, sobre o mesmo objeto, que poderá ser o mérito, no caso de coisa julgada material, ou uma questão formal (como um pressuposto processual), no caso de coisa julgada formal.
Na vigência do CPC/73 foi desenvolvido um conceito equivocado de coisa julgada, que a equiparava a preclusão. Combatemos essa doutrina pelos seguintes motivos: a) porque profliga a essência do conceito de coisa julgada, que se destina a produzir efeitos externos ao processo (ou fase do processo) em que foi proferida a decisão judicial; b) porque confunde os conceitos de preclusão e de coisa julgada; c) porque se vincula ao preconceito de que as sentenças terminativas não podem produzir efeitos para além do processo em que foram proferidas.
O novo Código de Processo Civil, recentemente sancionado pela Presidente da República, acolheu a tese desenvolvida por um dos autores deste artigo[3] e desvinculou-se do mito de que as sentenças terminativas – e, portanto, a imutabildade que lhe é conferida com o trânsito em julgado – não podem gerar efeitos extraprocessuais. Nesse sentido, a norma parágrafo 1º do artigo 486 do novo texto, preceitua que “[n]o caso de extinção em razão de litispendência e nos casos dos incisos I, IV, VI e VII do art. 485, a propositura da nova ação depende da correção do vício que levou à sentença sem resolução do mérito”.
Ora, proibição de repetição da ação, com o mesmo vício que foi declarado em processo anterior, decorre, sem sombra de dúvida, da autoridade da coisa julgada formal. É imperativo concluir que, após a entrada em vigor do novo CPC, ficarão imutabilizadas pela coisa julgada formal as sentenças terminativas que tenham por conteúdo: a) o indeferimento da petição inicial; b) a falta dos pressupostos processuais; c) a legitimidade e o interesse processual; ou d) o acolhimento da alegação da existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência.
Portanto, com a promulgação do novo CPC ganha força legal essa tese que já vinha recebendo reconhecimento da jurisprudência, em apreço substancial à segurança jurídica. Ponto para a democracia!
[1] MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. Coisa julgada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 29.
[2] MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. Coisa julgada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. Sobretudo, verificar o Capítulo 4.
[3] MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. Coisa julgada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006.
Lúcio Delfino é advogado, pós-doutor em Direito (UNISINOS) e doutor em Direito (PUC-SP).
Por Luiz Eduardo Ribeiro Mourão é advogado, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP e pós-doutorando em Direito na UFES.
Revista Consultor Jurídico, 12 de abril de 2015, 7h30


Deixe um comentário